O fim da história

em quarta-feira, dezembro 05, 2012
Era uma vez uma moça que vivia feliz em sua casa amarela, mesmo que a porta da sala estivesse com o vidro quebrado e o banheiro fosse apertadinho, mesmo ainda que o fogão deixasse um pouco a desejar. Vivia tranquila, organizando sua escrivaninha, varrendo ali, limpando aqui, fazendo comida acolá, em uma rotina gostosa e sem maiores problemas. As festas que aconteciam, de vez em quando, eram restritas a amigos muito próximos, e mesmo fazendo uma bagunça sem igual, o velhinho implicante que morava em frente não reclamava mais como fizera outrora. Tudo nos eixos, tudo com cor demais.
Adorava seu grupo de amigos, fazia realmente a diferença ter aqueles rostos para olhar com frequência, saber com quem contar, uma companhia tanto para ir ao hospital quanto para tomar uma (ou quatro!) garrafa de tequila. Era bom como estava, mesmo.
Porém, certo dia, um furacão passara por lá e não deixara nada no lugar. Ela estava numa boa, lendo seu livro quando ficou sabendo que seu amigo, um amigo muito querido, havia causado aquilo. E o furacão não perdoou a casa amarela. Viu-se amizades indo para um lado, amores para outro, confiança tentando escapar pelo teto, raiva quebrando janelas, lamentos batendo portas, o amargo da chuva ácida acabando com os sorrisos e a felicidade descendo pelo ralo, que estava entupido, então ela se debatia para conseguir passar por debaixo do portão, alcançando a canaleta.
Estranho como aquilo acontecera tão rápido! Não houve tempo para agarrar as fotos no mural do quarto, as frases que correspondiam a tantas histórias (por vezes engraçadas, outras trágicas) pulavam da janela, certamente visando o suicídio. Fora assim, tudo de pernas pro ar.

A moça conseguira encontrar abrigo debaixo da sua cama, mesmo com a janela tremulando e a porta batendo com o vento insuportável, viu-se segura ali. Quando a poeira baixou e as coisas se acalmaram, resolvera andar pela casa: nada mais estava no lugar.
Perto da porta dos banheiros, encontrou cacos de amizades acreditadas, até alguns dias, indestrutíveis. Na cozinha, em meio aos cacos de vidro de garrafas de cerveja, confiança, carinho, afeto - todos sangrando e dando seus últimos suspiros. As paredes da sala, nuas: não haviam mais histórias para serem contadas. A garagem, antes sala de reunião das mais divertidas bebedeiras, não existia mais. 
Seu quarto permanecera, na medida do possível, intacto. Protegera-se nele, e conforme conseguia, segurava seus pertences perto de si. O furacão tivera medo de passar por debaixo da cama, mas causara ódio, dor, raiva e mais um pouco de dor. Não poderia ter sido diferente: como destruir tudo a sua volta e tentar deixá-la intacta? O mundo não girava naquele sentido, não funcionava daquela forma.
Por fim, sentou-se em um canto e pôs-se a juntar alguns cacos que ficaram um pouco menos esmigalhados do que os outros, comendo um pedaço de chocolate para se concentrar em sua tarefa, sem deixar a raiva e a dor tomarem conta de todo o seu ser. Ainda podia sorrir quando conseguia unir perfeitamente alguns cacos.
Chuviscava e batia um vento entrecortante com todos os vidros da casa estilhaçados. Não permitiria mais que o furacão passasse por ali.


Letícia Christmann
Ps. Esse "era uma vez" chama-se últimos dias.

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