Crônica na Pedra

em terça-feira, agosto 17, 2010
O golpe foi de surpresa, impiedoso. A sirene não funcionou. A cidade se contorceu como um epilético, pendeu, quase tombou. Era um domingo, nove horas da manhã. Pela primeira vez em sua longa vida, a venerável cidade, mil vezes alvejada por catapultas, pedras, canhões, aríetes de ferro, nesse domingo de outubro por volta do meio do século foi golpeada dos céus. Os alicerces esquartejados gemeram como cegos com a dor do abalo. Milhares de janelas horrorizadas estilhaçaram num grito os seus vidros.
Depois do estrondo infernal, o mundo como que ensurdeceu. A cidade abalada fitava o céu aberto, que parecia pedir desculpas por sua neutralidade. Pelo céu passavam agora três pequenas cruzes cor de prata, que vinham de abalar de alto a baixo toda aquela massa de pedra.
Sessenta e duas pessoas morreram no bombardeio. A velha vivida Neslihan foi achada entre os escombros, coberta até a cintura de pedras, vigas e cacos de telhas. Ela não compreendia o que ocorrera. Agitava no ar os longos braços e gritava: "Quem me matou?". Tinha cento e vinte e dois anos. Era cega.
(Ismail Kadaré em Crônica na Pedra)

Ps. O livro é de um autor albanês, e vai contando a vida de uma cidade da Albânia, segundo ele, esquecida pelo mundo (exceto pelos bombardeios), no período da Segunda Guerra Mundial até a Guerra dos Bãlcãs. Não terminei de ler ainda, mas já me encantei pela narrativa. Recomendo. É o mesmo autor de Abril Despedaçado.

Postado por Letícia Christmann

3 comentários:

Rafa. disse...

Ops, comentei no texto de baixo achando que era o ultimo hahaha

Karol Coelho disse...

Lindo, Lê. Deve ser boa essa leitura, mesmo!

"'Quem me matou?' (...) Era cega."

Triste.

Érica Ferro disse...

"...esquecida pelo mundo (exceto pelos bombardeios)"

Pois é, né?
Triste constatar isso. Eu só queria saber quando é que vão entender que guerra não leva a nenhum lugar, a não a morte e a destruição.

 
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